A violência nas relações de intimidade

A violência nas relações de intimidade

“(…) Durante anos, porém, os passos de meu marido ecoaram como a mais sombria ameaça. Eu queria fechar a porta mas era por pânico. Meu homem chegava do bar mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel de seu querer: me vergastava com socos e chutos. No final, quem chorava era ele para que eu sentisse pena das suas mágoas. Eu era culpada das suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores… Venâncio estava na violência como quem não sai do seu idioma, eu estava no pranto como quem segura a sua própria raiz. Chorando sem direito a soluços; rindo sem acesso a gargalhada… Como eu me habituei a restos de vida».

Os olhos dos mortos, In Mia Couto, O fio das missangas

 

A violência contra a mulher na intimidade configura uma violação grave dos direitos humanos, podendo entender-se como «qualquer ato, omissão ou conduta que serve para infligir danos físicos, sexuais e/ou psicológicos, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coações ou qualquer outra estratégia. Tem como objetivo intimidá-la, puni-la, humilhá-la ou mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu género sexual ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental e moral ou abalar a sua segurança pessoal, auto-estima ou a sua personalidade ou diminuir as suas capacidades físicas e/ou intelectuais» (Comissão de Peritos para o acompanhamento da execução do I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, 2000).

A violência contra as mulheres é um fenómeno transversal (não escolhe classe nem estatuto social) e multidimensional, isto é, pode variar em termos de tipologia (abuso sexual, físico, psicológico/emocional) e severidade (empurrão, bofetada, violação).

As agressões incluem violência física (bofetadas, empurrões, puxar os cabelos, murros, apertar o pescoço), violência sexual (coerção para ter relações sexuais, toques indesejados, violação) e maus tratos emocionais (insultar, difamar, controlar o dinheiro ou humilhar).

As consequências na mulher da violência física podem resultar em múltiplas fraturas, hematomas, queimaduras, mordeduras, cortes, danos ao nível da audição e da visão, etc. A violência sexual e psicológica pode acarretar ansiedade, depressão, consumo de álcool, Perturbação de Stress Pós-Traumático (PTSD), distúrbios cognitivos e de memória (por exemplo, confusão mental, imagens intrusivas, dificuldades na tomada de decisão), alterações na imagem corporal, etc. Muitas vezes, os efeitos destes maltratos prolongam-se para além da cessação da violência.

O reconhecimento público da violência contra a mulher como um grave problema social tem crescido, embora ainda haja muito a fazer. A sociedade atual tem-se mostrado mais sensível face a esta realidade durante muitos anos escondida e pouco valorizada. Alguns fatores têm contribuído para a maior atenção a este fenómeno, como a redefinição do papel das mulheres na família, a maior abertura ao exercício dos seus direitos individuais e os testemunhos de vítimas, algumas delas figuras públicas. Mas ainda há muita tolerância face à violência, tanto da parte de quem assiste como das próprias vítimas; um exemplo é a relativização da violência “menos grave” (um empurrão ou a agressão verbal). Isto acontece dada a influência dos estereótipos culturais que enfatizam a normalidade da violência, a manutenção da família “custe o que custar” e a crença de que a violência foi apenas um ato isolado (Machado, Matos & Moreira, 2003).

A desculpabilização da violência presente nos discursos sociais e embebidas nas atitudes e mensagens de tolerância (Foi só uma vez; Foi culpa da bebida; Foi só uma bofetada) devem ser modificadas e as denúncias precisam assumir um papel mais preponderante na sociedade de modo a evitar a escalada e fins trágicos.

Por outro lado, a voz dos agressores também espelha a tolerância, banalizando a violência, pelo facto de sustentarem crenças de auto-desculpabilização, atribuição externa da culpa e minimização do dano causado à vítima (Machado, Gonçalves & Matos, 2005).

Alguns fatores aumentam a probabilidade de uma mulher sofrer danos ou morrer num episódio de violência conjugal, são eles: a) o acesso a armas pelo agressor, b) as ameaças de morte; c) a tentativa da mulher se separar do parceiro agressivo, d) o início da violência antes do casamento, e) o sexo forçado, f) o consumo de álcool pela mulher, g) o historial de agressões por parte do parceiro.

Previsivelmente, a violência conjugal também apresenta um impacto negativo nos filhos, que contactam diretamente com estes conflitos. Podem surgir na criança manifestações cognitivas (auto atribuição da culpa pelos conflitos dos seus pais), comportamentais (problemas de comportamento, menor competência social) e emocionais (depressão, ansiedade). Além disso, presenciar violência interparental pode representar um factor de risco para a agressão. Por exemplo, estas crianças podem desenvolver crenças desajustadas sobre a violência como forma mais normal de resolver conflitos entre pares.

A noção de transmissão intergeracional da violência através da aprendizagem social chama atenção para a importância dos contextos precoces de socialização familiar. É preciso mobilizar factores protetores que podem prevenir essa transmissão intergeracional, como o desenvolvimento de competências de gestão de conflitos e a divulgação da não tolerância face à violência.

Em janeiro de 2018 foi divulgada um investigação levada a cabo pelo chefe da PSP Miguel Oliveira Rodrigues, entre 2015 e 2016, que estudou a forma como o percurso escolar das crianças e jovens entre os 11 e os 18 anos é influenciado pelo crime que mais vitimiza as mulheres em Portugal e que em 2017 causou a morte a 19 mulheres. Este estudo encontrou uma taxa de retenção escolar nos filhos de mulheres maltratadas cinco vezes superior à média nacional. Trata-se de uma consequência dos atos violentos que as crianças assistem em casa e que tem efeitos negativos no seu rendimento escolar, além de provocar dificuldades de interação social.

A queda das desigualdades de género só poderá ser conseguida através da mudança de mentalidades e de medidas políticas, implicando uma intervenção em rede, multidisciplinar e coesa, capaz de “romper as barreiras culturais e os pré-julgamentos frente ao acolhimento e assistência às vítimas” (Acosta, Gomes, Fonseca, & Gomes, 2015, p. 126).

O caminho é ainda longo, mas cada vez mais se exponencia a preocupação sobre este fenómeno, quer por parte do Estado como da comunidade, o que é perceptível na criação de um Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, de uma Linha de Apoio às Mulheres Vítimas de Violência, de um maior número de Centros de Acolhimento, de publicação de estudos e colaboração da Comunicação Social, entre outras medidas.

 

Referências

Acosta, D., Gomes, V. Fonseca, A., & Gomes, G. (2015). Violência contra a mulher por parceiro íntimo: (In) visibilidade do problema. Texto Contexto Enfermagem, 24(1), 121-127.

Diniz, G. & Angelim, F. (2003). Violência doméstica – porque é tão difícil lidar com ela?. Revista de Psicologia da Unesp, 2(1), 20-35.

Machado, C. (Coord.). (2010). Vitimologia: Das novas abordagens teóricas às novas práticas de intervenção. Braga: Psiquilibrios.

Machado, Gonçalves, Matos (2005). Manual da Escala de Crenças sobre Violência Conjugal (E.C.V.C.) e do Inventário de Violência Conjugal (I.V.C.). Braga: Psiquilibrios.

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